
Renato Roseno
Os recentes acontecimentos denunciando expressões da política brasileira e seu já conhecido envolvimento com a corrupção e defesa de interesses privados me fazem lembrar o título de uma obra de Richard Sennet: Corrosão do Caráter. O autor discorria como o capitalismo contemporâneo, a flexibilização do mundo do trabalho, a lógica hiper-competitiva e os padrões atuais de "sucesso" corroem a escala de valores e qualquer forma de disciplina ética, mesmo para os padrões do próprio capitalismo.
Os últimos meses foram pródigos em demonstrar o grau de corrosão daqueles que ocupam funções estratégicas no Estado. Ministros do Executivo e Judiciário, desembargadores, parlamentares e funcionários públicos graduados - há denúncia para todos e para todas as cores. Destes fatos poder-se-ia dizer muito. Tenho, contudo, a pretensão de levantar um único aspecto: a indiferenciação ideológica dos envolvidos: de governos autodenominados de esquerda à direita mais conservadora, há indícios de muita corrosão.
Não quero dizer que a esquerda deveria, per si, ser a guardiã do interesse público - quem fez isso no passado demonstrou pouca coerência. A sociedade brasileira tinha, contudo, até pouco tempo a percepção que poderia, na política, encontrar alguma resistência à privatização do público. A conclusão a que quero chegar não é a de que todos são iguais. Ao contrário, continuo acreditando na possibilidade e necessidade de estabelecermos uma cultura política de esquerda desvinculada dos interesses privados e mantenho a convicção de que quem pode cumprir esta tarefa são as classes populares, suas organizações e movimentos. Num país que não conseguiu sequer completar o ideário republicano do final do século XIX, pois não há dúvidas que não temos cultura de exercício de direitos, mantemos um outro tipo de nobreza, bem como permanecem vigindo outros padrões de escravidão, me parece estratégico defender uma esfera pública como instrumento contra o fundamentalismo do mercado, pois este não tem limite algum a não ser em si mesmo. Nesta dimensão (e não no falastrônico combate à corrupção), está o valor imprescindível de confrontar os desvios dos agentes de Estado: combater a usurpação do público é combater a histórica privatização que o capital patrocina sobre os interesses das maiorias sociais e a conseqüente negação dos direitos destas.
Na minha opinião, a corrosão do caráter, no caso brasileiro, não é advinda somente das alterações do mundo do trabalho e das formas atuais do capitalismo flexível. Como País colonizado, cuja inserção internacional é periférica e dependente, tais corrosões são históricas e estruturais. Nossas pretensas "rupturas" foram, via de regra, hegemonizadas e capturadas por golpes das elites - da Independência à República. Por esta razão, é necessário reafirmar a necessidade de um outro projeto político para o País que não permita ceder à corrosão das convicções - esta, sem dúvida, mais lamentável que a corrosão do caráter. A lógica da governabilidade, do pragmatismo, da manutenção de pequenos nacos de poder institucional por via de alianças indigestas ou, até mesmo, coisas ridículas como o status do cargo, a marca do carro, um pouco mais no contra-cheque têm valido de substrato para defender o antes indefensável. Aqui e em Brasília assustam a velocidade e facilidade com que as convicções de transformação radical e de longo prazo foram, na prática (pois fora da prática é discurso e abstração), abandonadas. A bem do presente, das satisfações imediatas e das pequenas conquistas - algumas de valor, sem dúvida - descartaram-se possibilidades de reescrever a história.
Enquanto isso, entre "furacões" e "navalhas" as classes subalternizadas - os pobres do País - continuam os mesmos: os negros, as mulheres, as crianças, os índios, os sem-terra, os sem trabalho. Todos com muita esperança, resistência e criatividade para reinvenção do seu lugar no mundo. Nos anos 20, Mário de Andrade, por via do arquetípico Macunaíma vaticinava: "pouca saúde e muita saúva os males do Brasil são". Pois me parece que nas primeiras décadas do séc.XXI precisamos relembrar àqueles que querem mudar o Brasil do cuidado que devem ter com a saúva que come as idéias, as boas intenções e destrói lentamente até as fortalezas das convicções.
Renato Roseno, é advogado.
Um comentário:
Para clarear um pouco o significado da "corrosão do caráter" em Sennett
A "corrosão do caráter" decorre do poder social e político que o dinheiro adquire historiamente. A sociedade capitalista cria o ambiente social mais propício para que se estabeleça esta "divindade visível". Nela o dinheiro adquire a condição de compêndio celestial das mercadorias; e estas sua existência terrena. Nesta sociedade, o dinheiro é a expressão de comando sobre o mundo das coisas e sobre o mundo da vida. Daí porque, entre o universo e a Terra, tudo terá que ser transformado em mercadoria.
Por isso é que as tranformações advindas do mundo do trabalho e das formas atuais do capitalismo flexível corroboram na direção da corrosão dos caracteres.
Dizer que nossas "corrosões" são históricas e estruturais não significa muito, se não aclararmos a matriz em que se assentam. O modo de acumulação colonial, que antes beneficiava Portugal, agora, sob a denominação de inserção periférica e dependente, reafirma a razão instrumental do modo de expansão do capital no Brasil, desde os 1500.
Sem dúvidas, no conjunto das chamadas "elites" também estão militantes históricos das causas sociais brasileiras. Assemelham-se aos plutocratas históricos, posto que reduzidos a condição de buscadores de poder social particular (dinheiro).
"A lógica da governabilidade, do pragmatismo, da manutenção de pequenos nacos de poder institucional por via de alianças indigestas ou, até mesmo, coisas ridículas como o status do cargo, a marca do carro, um pouco mais no contra-cheque têm valido de substrato para defender o antes indefensável." Esta, uma bela síntese das "corrosões"; de como muitos (que são poucos, diante das classes subalternizadas) foram capturados pela racionalidade econômica do capital que exige e induz a produção e busca rápida e incessante de dinheiro.
A corrosão do caráter, que tem a categoria valor como matriz, também agride o ambiente natural. A natureza do valor redefine o valor da natureza. Nesse sentido, a segunda vitória do capitalismo não será registrada pela mídia burguesa. Sobrarão as catedrais do consumo, sem consumidores, nem mesmo seus apologetas.
Aécio
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